segunda-feira, novembro 27, 2006

Umbanda - O Elogio ao Progresso na obra dos Intelectuais de Umbanda

Sexto Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas


O Elogio ao Progresso na obra dos Intelectuais de Umbanda


Artur Cesar Isaia
UFSC

A data tida como marco "oficial" do nascimento da Umbanda foi o 15 de novembro de 1908, quando, em uma sessão espírita kardecista, "manifestou-se" pela primeira vez, no Estado do Rio de Janeiro, o caboclo das Sete Encruzilhadas. Essa entidade traria a mensagem fundadora da Umbanda, através da mediunidade de um homem comum, residente na cidade de Neves, no Rio de Janeiro: Zélio Fernandino de Moraes. Zélio, egresso do kardecismo, teria sofrido uma grave enfermidade que o tornara paraplégico. O relato de sua cura, da manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas revelando a missão de Zélio de fundar uma nova religião, forma o que Brown denomina de "mito de origem"1 da Umbanda. Pensamos que a significação desse "mito de origem" merece ser explorada para compreendermos a riqueza simbólica do mesmo. Se, como Brown observa, não se pode, com cerrteza absoluta, afirmar-se que Zélio de Moraes tenha "fundado" a Umbanda2, a data da primeira manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas passou a ser aceita pela maioria dos umbandistas como o marco inicial da nova religião, corroborando a idéia de "mito de origem". Por outro lado, é bastante sintomático que essse marco fundador coincida com uma data tão significativa para a "biografia" do Estado brasileiro, como a comemoração do advento do regime republicano. A afirmação da relação entre a história recente do Brasil e o surgimento da Umbanda é constante na obra de intelectuais umbandistas da primeira metade do século, que assumem um caráter claramente evolucionista. Nesta visão, o surgimento da Umbanda integraria um plano do "astral superior" visando ao aprimoramento moral e material dos brasileiros. Por exemplo, Diamantino Trindade, ao contextualizar o surgimento da Umbanda, acentua que o advento do regime republicano e a libertação dos escravos representariam etapas necessárias para o aparecimento de uma religião tipicamente brasileira. Banindo a escravidão e a monarquia, o Brasil aproximava-se de um estágio mais próximo das conquistas da racionalidade humana, ao qual se vinculava a Umbanda. Por outro lado, integraria o esforço evolutivo da humanidade atestada pela codificação do Espiritismo por Kardec no século passado:

"Gradativamente, as Entidades integrantes da Corrente Astral da Umbanda (governo da Terra, segundo o autor) foram, através de seus médiuns, lançando as bases do Movimemnto Umbandista, que numa primeira fase, visa abarcar o maior número de pessoas, no menor espaço de tempo possível. O final do século XIX é marcado no Brasil por um grande balanço social devido a libertação dos escravos e a instauração da República, uma forma mais justa de governo que iniciava sua peregrinação no Brasil. A Corrente Astral de Umbanda aproveita esta reviravolta social e, por volta de 1889, lança o vocábulo Umbanda em vários pontos do país. A essa altura o mediunismo já invadira os cultos deturpados e miscigenados entre os indígenas e os escravos africanos3."

A ligação estabelecida entre surgimento da Umbanda, abolição da escravatura e proclamação da República no Brasil pode ser melhor compreendida ao acrescentarmos a essa relação o surgimento e difusão do Espiritismo Kardecista no Brasil. De fato, os intelectuais espíritas faziam questão de relacionar a difusão do Espiritismo no Brasil com as conquistas pós-revolucionárias, advindo daí a relação entre espírita, republicano e abolicionista4. Por outro lado, aflora em argumentos como esse, a defesa da Umbanda como uma religião essencialmente nacional, surgida em consonância com os planos do "astral", visando a tornar o Brasil mais próximo da civilização e da razão. Portanto, afirmando a idéia de progresso evolutivo, caríssima ao Espiritismo codificado por Kardec. Se o surgimento da Umbanda integrava, para os intelectuais umbandistas, um processo evolutivo no caminho da construção de uma civilização baseada nos ideais da racionalidade e do progresso, nada mais necessário do que a separação total da nova religião de tudo o que tangenciasse práticas tidas como "bárbaras" e "atrasadas". A Umbanda assumia a herança afro-indígena, aproximando-se de uma representação sincrética da nacionalidade, própria de uma parcela da intelectualidade brasileira da primeira metade do século XX. Ao assumir o passado afro-indígena e ao representar-se como religião nacional e sincrética, a Umbanda acentuava em seu discurso as cores do evolucionismo de matiz kardecista. Sendo assim, a valorização do passado afro-indígena só existia, no discurso desses intelectuais, dentro de uma perspectiva processual. Valorizavam o índio e o negro como importantes elementos formadores da nacionalidade, mas sob a ótica da evolução constante, capaz de "aprimorar" o que de "selvagem" e "bárbaro" prendia-os a um passado distante da civilização. Nesse sentido, os intelectuais umbandistas desenvolveram todo um discurso denunciador de práticas "fetichistas e supersticiosas", avessas ao "progresso e civilização".

Em obra surgida no início dos anos cinqüenta, Aluizio Fontenelle profetizava o futuro da Umbanda como religião predominante no Brasil, mas fazia questão de afirmar que estava referindo-se:

..."não a essa Umbanda mistificada e misturada com os diversos credos fetichistas hoje conhecida no Brasil inteiro. Será uma Umbanda codificada, uma Umbanda pura, na qual se aproveitará de todas as religiões existentes na terra somente aquilo que for sublime e perfeito(...)Quanto aos praticantes dos candomblés e aos que praticam a magia negra, estes serão devidamente orientados e instruídos em novas práticas, abandonando por completo os rituais bárbaros que os identificam. O Espiritismo na Lei de Umbanda em sua nova fase, surgirá com o progresso do mundo; novos horizontes nos serão apresentados e o mundo marchará de fronte erguida na direção do aperfeiçoamento universal."5

A nova religião era apresentada como totalmente inserida em um modo de vida urbano e civilizado. A Umbanda, na ótica desses intelectuais, aparecia como uma religião que incorporava os códigos simbólicos da modernidade. Portanto, lançavam seu interdito às práticas "em completo contraste com a evolução moral, material e espiritual" da vida moderna, que misturavam "rituais bárbaros provindos do africanismo, com práticas católicas e concepções kardecistas"6. A Umbanda, através de seu esforço racionalizador, de seu substrato doutrinário, deveria banir as práticas do africanismo. Estas, segundo João de Freitas mostravam-se totalmente "impraticáveis entre nós porque não se coadunavam com nossos foros de civilização"7. Apresentando a discrepância entre as práticas rituais de matriz africana e a vida urbana, assim refere-se Emanuel Zespo:

"...suas práticas de religião primitiva estão incompatíveis com o mundo atual; e, sua subistência em nosso meio só seria possível mediante uma modernização e adaptação no ritual externo. Não estamos mais em condições de sacrificar galos vermelhos a Exu e largá-los na primeira encruzilhada de um centro urbano. Tal rito, no mato, não estaria fora de ambiente, mas em plena Avenida Rio Branco... isto não é mais exeqüível. Os próprios orixás não aceitam estas violências de rito primitivo."8

A inserção da Umbanda no curso evolutivo da humanidade e, particularmente, no "progresso" revelado por um Brasil, que acentuava características industriais e urbanas em alguns centros do sudeste do país, é enfatizada em tese defendida por Martha Justina no Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda, celebrado no Rio de Janeiro em 1941. Esse Congresso, acontecido ainda em plena vigência do Estado Novo, fixou explicitamente a posição dos intelectuais da nova religião em relação à identidade, doutrina e ritual. Na tese de Martha Justina, a autora sustenta, que, apesar de trazida do continente africano, a Umbanda possuía um princípio evolutivo capaz de "aprimorá-la" constantemente, em sintonia com o "progresso" do país. Assim, se os ritos observados pelos africanos possuíam "uma série de coisas exóticas e horripilantes", a religião, em contato com a civilização, abandonaria essas práticas "bárbaras", com o esforço racionalizador da Umbanda no século XX. Entre as práticas "horripilantes" detectadas pela autora incluem-se as observadas pelo candomblé no Brasil, tais como: "raspar totalmente a cabeça... fazer jejum, ficar em retiro durante muitos dias, em um camarim, e quando daí sair dançar sob o som de músicas africanas...sacrificar animais e oferecer bebidas". A Umbanda trazida pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, por outro lado, inserindo-se totalmente no curso evolutivo da humanidade e no "progresso" revelado pelo país, deveria revelar uma mensagem totalmente compatível com o modo de vida de pessoas educadas, letradas e urbanas. Assim, referindo-se à evolução das práticas religiosas africanas na Umbanda brasileira escreve:

"Isto no Brasil já dista de mais de meio século; e como nada estaciona no mundo, obedecendo à lei imutável do Criador, a Lei de Umbanda também segue seu curso evolutivo, saindo das grotas, das furnas, das matas, abandonando os anciões alquebrados, fugindo dos ignorantes, quebrando as lanças mãos dos perversos, vem nessa vertigem louca de progresso, infiltrando-se nas cidades para receber o banho de luz da civilização, e em troca nos oferece a sua utilidade que não é mais do que suas obras de Caridade praticadas pelos espíritos que formam as grandes falanges dos africanos, digo, os que tiveram por berço material a África; eles trabalham no grande laboratório de Universo, manipulando os fortes remédios para curar as terríveis enfermidades da humanidade."9

A questão referente às origens africanas da Umbanda, defendida pela tese de Martha Justina a partir de uma perspectiva evolucionista, é retomada por outros congressistas. Essa evidência aponta para a necessidade que os umbandistas do período revelavam de, ao mesmo tempo, apresentar uma religião com características sincréticas, de fácil identificação popular e distanciá-la de conteúdos imagéticos que a divorciavam do convívio com os valores socialmente dominantes no Brasil da primeira metade do século XX. Interessante é que esta visão desenvolvida por alguns intelectuais de Umbanda e que defendia, ao lado de suas origens africanas, a diluição de sua africanidade no contexto urbano que viu nascer a nova religião apresentará pontos de aproximação com a tese defendida por Roger Bastide e reinterpretada, posteriormente, por Renato Ortiz.

Os trabalhos apresentados nesse Primeiro Congressso, recuam as origens da Umbanda a um passado totalmente distante do "barbarismo" negro africano. Assim, se a Umbanda entra no Brasil com os negros, as suas origens estavam totalmente fora do "estágio evolutivo" dos povos africanos. Persistem esses intelectuais na visão processual e evolutiva da Umbanda, que fazem questão em não identificar pura e simplesmente com o passado negro. A tese de Diamantino Coelho Fernandes, por exemplo, reabilita a lenda da existência do continente da Lemúria, o qual teria sido, em grande parte, dominado pelos antigos povos africanos no passado. Do contato com os indus é que os negros africanos teriam aprendido os fundamentos da Umbanda. Segundo Fernandes, com o passar do tempo, com a destruição do poderio africano na Lemúria, os negros, pouco a pouco, abandonam a riqueza dos ensinamentos iniciáticos revelada pelo contato com os povos orientais, "involuindo" e "deturpando" seus ensinamentos. Ficaram princípios gerais, capazes de fazer a Umbanda retomar seu curso evolutivo em meio á "civilização" brasileira:

"Morta, porém, a antiga civilização africana, após o cataclismo que destruiu a Lemúria, empobrecida e desprestigiada a raça negra, - segundo algumas opiniões, devido à sua desmedida prepotência no passado, em que chegou a escravizar uma boa parte da raça branca - os vários cultos e pompas religiosas daqueles povos sofreram então os efeitos do embrutecimento da raça, vindo, de degrau em degrau, até ao nível em que a Umbanda se nos tornou conhecida. Desde, porém, que estudiosos da doutrina de Jesus se dedicaram a pesquisar os fundamentos desta grande filosofia, que é, ao mesmo tempo, luz, amor e verdade, e a praticam hoje, sincera e devotadamente em sua alta finalidade de congregar, educar e encaminhar as almas para Deus, o Espiritismo de Umbanda readquiriu o seu prestígio milenar, assim como o acatamento e respeito das autoridades brasileiras..."10

As palavras acima devem ser contextualizadas na conjuntura em que se realizou o Primeiro Congresso de Espiritismo de Umbanda no Brasil. A ditadura varguista, ciosa na desmobilização popular e na manutenção do monopólio absoluto da resolução da "questão social", via com muito bons olhos a religião espírita11. A tolerância da ditadura com a realização do congresso, a tentativa explícita dos umbandistas em aparecerem como espíritas, a sua busca de reconhecimento frente às autoridades governamentais, evidenciam a importância e a tolerância que o Estado Novo passava a dar ao Espiritismo no Brasil.

A tentativa dos umbandistas em demarcar seu distanciamento das práticas religiosas de matriz africana, aproximando-se do kardecismo, extrapola as teses do Primeiro Congresso, aparecendo nas obras dos seus intelectuais. O beneplácito do Estado Novo ao Espiritismo fazia eco com os valores assumidos pela elite brasileira e pelo senso comum. Em um país em que a prática mediúnica alastrara-se consideravelmente, a elite passava a tolerar bem mais o contato com os seres invisíveis, desde que fosse resguardado seu caráter experimental e científico. O discurso espírita, justamente, insistia nesse aspecto, apresentando Kardec o Espiritismo como "une science d?observation et une doctrine philosophique". Assim, o Espiritismo definia-se como "une science qui traite de la nature, de l?origine et de la destinée des esprits, et de leurs rapports avec le monde corporal." O caráter científico do Espiritismo seduzia membros da elite brasileira, desde o fim do século XIX, em um momento fortemente marcado pela influência cientificista. Parte da elite brasileira serve, portanto, de introdutora das práticas espíritas no Brasil13, fornecendo ainda um considerável peso legitimante à nova religião em uma sociedade como a brasileira da primeira metade do século XX.14

O peso do Espiritismo kardecista na formação da identidade dos primeiros umbandistas é bastante grande no Brasil. O próprio mito de fundação da Umbanda já traz a inequívoca presença do kardecismo, se atentarmos para o fato de ter acontecido a primeira manifestação do caboclo das Sete Encruzilhadas em uma sessão espírita. Inclusive, o centro fundado, em 1908, como primeiro núcleo da nova religião, a Tenda Nossa Senhora da Piedade, conservou por muito tempo alguns procedimentos tipicamente kardecistas, como a presença da mesa em torno da qual aconteciam as manifestações mediúnicas15. Igualmente, a Umbanda conservou a característica terapêutica da reinterpretação brasileira do Espiritismo francês do século XIX, persistindo, em alguns lugares, ainda em meados do século XX, a prática do receituário "de mesa", notadamente na região sudeste do país16. Por outro lado, os intelectuais da nova religião, ao tentarem uma racionalização de seus princípios, passavam a apresentá-la como uma modalidade do Espiritismo, acrescida do ritual, inexistente no kardecismo. O Espiritismo francês do século XIX, na ótica dos intelectuais de Umbanda, era reinterpretado em terras brasileiras, dotado de uma característica que lhe facultava um acesso mais direto às massas: o ritual de natureza sincrética. Antônio Teixeira, por exemplo, divide o Espiritismo em duas grandes correntes oriundas do século XIX: a anti-reencarnacionista (de matriz norte-americana, com as irmãs Fox e André Jackson Davis) e a reencarnacionista (de matriz francesa). Esta última corrente, o autor subdivide em Espiritismo kardecista e Umbanda17. Florisbela Franco, escrevendo sobre a Umbanda em um meio marcadamente propício ao kardecismo, como o interior de Minas Gerais18, apresenta o seu livro "Umbanda" como: "Obra mediúnica sobre este ramo do Espiritismo prático, ditado pelos espíritos de Pai João, Mãe Maria da Serra e Aleijadinho, no Grupo Espírita Unidos pelo Amor de Jesus, Juiz de Fora, MG"19. A característica evolucionista apresentada pelos intelectuais de Umbanda do período, matiza-se, nessa obra, de uma peculiaridade: a Umbanda, sendo uma modalidade ritualística do Espiritismo francês do século XIX, tenderia a diluir-se completamente nos ensinamentos kardecistas, abandonando todo o aparato de culto externo, ao atingirem os brasileiros um estágio evolutivo capaz de prescindir do ritual sincrético:

"Deus...procura auxiliar a todos os filhos...para que todos possam atingir mais rapidamente a perfeição espiritual. Umbanda, que foi criada com essa finalidade, poderá ser modificada segundo o grau de aperfeiçoamento que uns e outros forem atingindo; seu desaparecimento, contudo, só se dará quando os homens se tornarem verdadeiros espíritas, isto é, despreendidos dos interesses materiais, unidos por uma só fé, mansos e humanos, de coração puro como Jesus foi."20

Posicionamento semelhante tem Aluízio Fontenelle. Segundo o autor, a Umbanda tenderia a desenvolver uma racionalidade próxima à cultivada pelo Espiritismo kardecista à medida em que acontecesse a evolução dos umbandistas e do próprio país. A tendência, então, seria o abandono de práticas rituais em completa desarmonia com o estágio evolutivo de seus adeptos e com o grau de racionalização apresentado pelos ensinamentos da nova religião. Inclusive, chega a propor, no futuro, a supressão das imagens e "congás" pois:

..."isso acarreta um misticismo incompreensível de adoração a fetiches criados pela Igreja Católica, em completa desacordo com as leis de Cristo que foi bem explícito em determinar: ?nada se faça a imagem ou semelhança?. Portanto, esses bonecos que enfeitam os altares das igrejas e inúmeros centros espíritas, nada mais representam do que uma desobediência às leis de Deus.Por outro lado, certos rituais utilizados nessa falsa Umbanda de hoje, estão em completo contraste com nossa evolução moral, material e espiritual ..."21

A aproximação tentada pelos primeiros umbandistas com o kardecismo no Brasil ,contou com a enérgica oposição dos círculos espíritas do centro do país. Esses não admitiam a ligação entre o kardecismo, que se credenciava à sociedade com uma identidade próxima aos valores consentidos pela elite e a Umbanda, ainda presa a conteúdos imagéticos que a confinavam aos subterrâneos sociais. A esse respeito, manifestou-se o Primeiro Congresso Espírita, reunido em São Paulo em 1947, organizado pela União Social Espírita. Entre as conclusões do referido congresso estava a de que era preciso unificar o Espiritismo, devido a sua "dispersão generalizada e sistemática", que levava a práticas totalmente desvirtuadas do substrato científico, filosófico e religioso da codificação kardecista. Essa dispersão era vista como a

"Disseminação de práticas exóticas, misto de magia e de superstição, com a introdução de ritos de outros credos, e cerimônias religiosas de estranho aspecto e significação, tudo o que está designado como ?baixo espiritismo?, mas não passa de ?falso espiritismo?."22

O endosso ao evolucionismo kardecista dava-se, para os intelectuais umbandistas, juntamente com o esforço desafricanizante encetado na primeira metade do século XX. Ao aceitarem a idéia de progresso cara ao evolucionismo do Espiritismo francês do século XIX, endossavam a visão kardecista acerca dos desiguais estágios dos povos. Aceitavam, igualmente, a tarefa "educadora" dos povos mais "evoluídos" sobre os "irmãos" mergulhados ainda em um estágio inferior. Para Kardec, a história dos povos estava totalmente inserida na grande lei de evolução que rege tudo no universo. Desta forma, o karma coletivo burilaria os povos, tornando-os paulatinamente melhores e mais próximos da razão e do progresso. Aceitava Kardec a desigualdade dos povos sob um prisma processual. Os povos não traziam o estigma da inferioridade marcados indelevelmente por toda a sua história. Inseridos na grande lei da evolução, os povos resgatavam karmicamente, como os indivíduos, seus erros. O rumo de todos os homens só era um: o progresso, rumo a uma convivência assentada sob princípios racionais e acordes às leis que regem a natureza, a vida e o destino humano. Sobre esse assunto referiu-se especificamente a "Revue Spirite", resumindo a doutrina kardecista, em artigo que tratava sobre a raça negra e sua pretensa inferioridade: se a raça negra "est vouée par Dieu à une éternelle inferiorité", a consequência seria pura e simplesmente aceitar a impossibilidade de "civilizar" os negros, de ajudá-los a trilhar um processo evolutivo inexistente, o que equivaleria a aceitar "qu?il faut se borner à faire du nègre une sorte d?animal domestique."23 O artigo em questão enfoca o lugar dos negros frente ao ocidente, concluindo que, se a situação vivida pelos mesmos denotava um "inferior modo de vida" em relação aos "civilizados", isso não era decorrência de uma inferioridade imanente. Apenas era sintoma de seu devir evolutivo, trazendo os negros, igualmente, a potencialidade ao progresso e ao aperfeiçoamento.

O papel dos povos "civilizados" em relação aos negros seria, portanto, o de levar-lhes as "luzes" do aperfoeiçoamento moral, auxiliar-lhes a trilhar o seu plano evolutivo. À população branca, "qui a donné peuvres de la supériorité de sa intelligence"24 era destinado um trabalho educador por excelência, "libertando" os negros dos "maus hábitos", que, caracterizando seu "inferior" estágio evolutivo, granjeavam-lhes cada vez mais dívidas kármicas, dificultando seu progresso.

Gravitando em torno do discurso do Espiritismo francês do século XIX, os intelectuais de Umbanda irão posicionar-se com explícitas reservas frente a tudo o que sugerisse uma aproximação com o passado negro. Esse posicionamento chega ao ponto de um jornal umbandista do Rio de Janeiro, na década de cinqüenta, afirmar categoricamente que o samba era indício visível de primitivismo, capaz de catalizar estados patológicos, próximos ao "barbarismo" dos povos incultos:

"O tantã do carnaval é um ritmo obsidiante, prejudicial ao psiquismo de todos nós em geral e em especial aos espíritos em transição. Todas as vibrações das baixas esferas sintonizam-se com o ritmo carnavalesco.(...) Daí porque os que ainda preferem o gozo material, o entorpecimento da consciência pela exaltação dos sentidos e a euforia pelo espasmo da libido exacerbada e satisfeita, sintonizam-se perfeitamente com as vibrações inferiores que se traduzem literalmente na monotonia dos atabaques bárbaros, na melancolia frenética e histérica das zumbaias cadenciadas.E vão desfilando em grupos, em blocos e em multidões...qual horda primitiva e sonambúlica, dantesca e louca. É o delírio do instinto genésico desvirtuado, a morbidez e o desespero de vícios incontidos e incofessáveis."25

Progresso, evolução, civilização, são idéias recorrentes na obra desses intelectuais. Perpetua-se, portanto, uma formação discursiva extremamente presente em toda a primeira metade do século XX, reafirmada na voz de boa parte da "inteligentsia" brasileira, da Igreja Católica, do Estado e de saberes aceitos como aptos para interpretar a realidade. A aproximação da Umbanda e de seus intelectuais com o discurso do progresso, cara ao Espiritismo do século XIX, ganha ainda maior visibilidade ao atentarmos para a distinção que a maioria de seus intelectuais fará entre Umbanda e Quimbanda. A Quimbanda, representaria, na ótica desses intelectuais o mundo instintivo, baixo, "esquerdo"26, dominado pelas falanges de seres não evoluídos, as diversas modalidades de Exus27. Esses seres estão associados para Oliveira Magno, com o "eu inferior", que necessita curvar-se ao superior28,conformando-se, portanto, à grande lei da evolução. Na exegese dos intelectuais umbandistas, esses seres, como qualquer espírito, teriam condições de evoluírem, de abandonarem as "trevas", buscando a "luz". Isso dá-se, à medida em que passam a integrar os trabalhos de "caridade" propostos pela Umbanda, segundo a ética cristã reinterpretada por Kardec. Renato Ortiz interpreta essa "evolução" como correspondendo a sua inserção e submissão às regras simbólicas nas quais se move a sociedade29. A tentativa explícita dos intelectuais de Umbanda de separá-la das manifestações mediúnicas tidas como primitivas, aéticas, ligadas à marginalidade, opôs, por um lado, a Umbanda, ligada à ética cristã e ao Espiritismo francês, por outro, uma realidade ritual julgada totalmente despida de preocupações axiológicas, próxima dos interesses materiais e imediatos. Com isso reproduziam o jogo de alteridades criado por outros discursos em relação à Umbanda, acentuando as cores luminosas de uma religião de encontro a qual passavam a existir práticas escuras, aéticas abrigadas em regiões subterrâneas e perigosas da realidade30. Assim, os intelectuais de Umbanda tentaram plasmar uma identidade completamente distinta, tanto do Candomblé, como da macumba e da Quimbanda. Essa oposição, tentada pelos intelectuais de Umbanda da primeira metade do século XX, não encontra correspondência na realidade vivida pelos centros, que, ao lado de filiar-se a federações umbandistas, longe estão de cumprir a risca as determinações doutrinárias e rituais propostas pelos intelectuais da nova religião e assumidas por essas organizações31.

No caso do relacionamento específico da Umbanda com a Quimbanda, os estudos de George Lapassade indicam, para a última, uma identidade especial, em contraste, tanto com a cultura dominante, quanto com a Umbanda. Para o autor, a Quimbanda representaria "le retour du refoulé". Ou seja, a Quimbanda, estaria ligada a um código simbólico muitíssimo próximo à história do negro brasileiro e de suas lutas. Assim, enquanto a Umbanda afastar-se-ia das raízes africanas, na Quimbanda dar-se-ia, uma aproximação com as mesmas, endossando uma negritude próxima dos valores e lutas dos brasileiros pobres e marginalizados. Ao invés de cultuar o negro como um "preto velho", ou seja, um escravo ancião, familiar e submisso ao senhor branco e a seus valores, como acontece na Umbanda32, a Quimbanda incorporaria um outro estereótipo, o negro contestador, capaz de assumir a luta por seus direitos contra o opressor33. Para Lapassade, que estudou, sobretudo, macumbeiros e quimbandeiros no eixo Rio-São Paulo, a maior evidência desse fato seria a presença, ainda em nossos dias, do mundo islâmico, na memória de numerosos adeptos da Quimbanda. A referência ao mundo islâmico na memória dos macumbeiros e quimbandeiros seria, para o autor, uma evidência do aspecto contracultural da Quimbanda, justamente por atualizar a saga dos negros islamizados, os malés, sublevados na Bahia no início do século XIX34. Em oposição ao caráter contracultural de macumbeiros e quimbandeiros, os intelectuais umbandistas, ao assumirem o discurso do Espiritismo francês do século XIX, seu apego a idéias como ordem, evolução, progresso, assumiram, igualmente, o elogio à educação, capaz de alçar as populações "atrasadas" às "luzes" do conhecimento das leis eternas que regem harmonicamente o cosmos. Como no Espiritismo francês do século XIX, altamente influenciado pela escola pedagógica de Pestalozzi, nesse processo educativo, papel preponderante desempenharia o livro, capaz de socializar verdades democraticamente35. Os intelectuais de Umbanda, ao mesmo tempo em que faziam o elogio ao livro e seu papel na nova religião, marcavam claramente as fronteiras que a separavam do candomblé e demais cultos africanos. Ao contrário do candomblé, onde as normas rituais, as orações e preceitos são oralmente transmitidos, a Umbanda, nos seus primórdios, fez questão em apresentar-se como uma religião letrada, próxima, portanto, aos valores consentidos pelas regras dominantes na sociedade. Segundo Ortiz e Montero, o sagrado umbandista é apreendido através do livro, nesse sentido opinam que "a passagem do Candomblé para a Umbanda corresponde à passagem histórica de uma cultura oral para uma cultura escrita."36 Preferimos dizer que a exegese dos intelectuais de Umbanda da primeira metade do século XX (no seu afã de ter a palavra definitiva do que seria a Umbanda) tentou impor a representação de uma religião letrada, nacional e perfeitamente harmonizada com as regras simbólicas orientadoras do agir coletivo, imposição nem de longe reproduzida canonicamente na cotidianidade umbandista.

Após o Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda irão multiplicar-se os livros de intelectuais da nova religião, que tentavam propor codificações rituais e doutrinárias, aparecendo catecismos, manuais de condução dos trabalhos, etc., que, não raras vezes, conflitavam em suas interpretações.. Ao esforço desafricanizante e erudito da maioria desses intelectuais irá somar-se uma tentativa inversa: a da valorização das raízes explicitamente negras. Essa tendência irá consubstanciar-se, principalmente no final dos anos cinqüenta, com o líder umbandista Tancredo da Silva Pinto37. Contudo, a nota dominante da obra dos intelectuais de Umbanda de meados do século XX aponta para um efetivo trabalho de desafricanização, de aproximação com os valores dominantes na sociedade.


Notas

1. BROWN, Diana. Uma História da Umbanda no Rio. In: BROWN et al. Umbanda e Política. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985 p. 10.

2. Idem.

3. TRINDADE, Diamantino. Umbanda e sua História. São Paulo: Ícone, 1991, p. 54 (o grifo é nosso).

4. A esse respeito ver MACHADO, Ubiratan. Op. cit.

5. FONTENELLE, Aluízio. A Umbanda através dos séculos. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1953, p. 76 (o grifo é nosso).

6. Idem, p. 99.

7. FREITAS, João de. Umbanda em revista. s.l. s.ed., 1941, p.17.

8. ZESPO, Emanuel. Codificação da Lei de Umbanda (Parte científica). Rio de Janeiro: s.ed., 1951, p. 53-4 (o grifo é nosso).

9. JUSTINA, Martha. Atualidade da Lei de Umbanda. In: Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda. Trabalhos apresentados ao 1º Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, reunido no Rio de Janeiro, de 19 a 26 de outubro de 1941.Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1942, p. 93-4 (o grifo é nosso).

10. FERNANDES, Diamantino Coelho. O Espiritismo de Umbanda na Evolução dos Povos. In: Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1942, p. 46-7 (o grifo é nosso).

11. Ver a esse respeito o relatório elaborado pelo Serviço de Inquéritos Políticos e Sociais, que, sob o comando de Filinto Muller, pronunciou-se totalmente favorável às atividades do Espiritismo, julgado inonfensivo ao Estado. Segundo o documento, o Espiritismo não demonstrava qualquer perigo ao regime, ao contrário do catolicismo. Este, poderia transformar-se em inimigo do Estado, ao julgar-se alijado na condução da "questão social" e no controle sobre a classe trabalhadora. As forças religiosas no Brasil do ponto de vista de suas influências políticas e econômicas. Arquivo Fillinto Muller. Ref./Relatório CHP-SIPS,I. CPDOC/Fundação Getúlio Vargas-RJ.

12. KARDEC, Allan. Qu'est-ce que le Spiritisme? Introduction à la connaissance du monde invisible par les manifestations des esprits. Paris: Éditions Vermet, s.d, p.8.

13. Ver a respeito da importância da elite na introdução do Espiritismo no Brasil: MACHADO, Paulo Ubiratan. Os intelectuais e o Espiritismo. Niterói: Lachatres, 1997.

14. A reinterpretação brasileira das teses kardecistas, acentuando o caráter terapêutico do Espiritismo, em detrimento da estrita experimentação proposta pelo codificador, foi estudada por Warren. O autor salienta que a interpretação que Bezerra de Menezes, o médico que se notabilizará como o "pai do Espiritismo" no Brasil, deu às teses kardecistas, relativizava o peso inexorável do karma, substituindo-o por uma explícita tentativa de minorar os males corpóreos e espirituais pela prática da invocação dos espíritos.WARREN, Donald. Op. cit. Partindo-se da constatação de que os pioneiros dirigentes da nova religião pertenciam a uma elite (pelo menos nos grandes centros e na Federação Espírita Brasileira), com isso via-se aprofundada a ética paternalista, com que a elite brasileira vivenciava o lema kardecista "hors la charité, point de salut".

15. MORAES, Zélia de. Entrevista.Rio de Janeiro, 10 de junho de 1997. Arquivo do autor (A/A). Ver, igualmente, a esse respeito, a foto da "mesa branca" da Tenda Nossa Senhora da Piedade, publicada em TRINDADE, Diamantino Fernandes. Op. cit., p.71.

16. SOUZA, Luci Calvoso de. Entrevista. Rio de Janeiro, 10 de junho de 1997. (A/A).

17. TEIXEIRA, Antonio Alves. Umbandismo. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Aurora, 1957, p. 24.

18. O interior do Estado de Minas Gerais apresenta uma grande concentração de médiuns kardecistas e centros espíritas no Brasil, salientando-se a presença de Francisco Cândido Xavier em Uberaba

19. FRANCO, Florisbela M. Sousa. Umbanda. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Aurora, 1957, p.1.

20. Idem, p.41(o grifo é nosso).

21. FONTENELLE, Aluízio. Op. cit., p. 99

22. ANAIS DO PRIMEIRO CONGRESSO ESPÍRITA DO ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo: s.ed., 1947, p.6.

23. Perfectilité de la race nègre. Revue Spirite. Journal d'ÉtudesPsychologiques. Paris, (4), abr., 1862, p. 97.

24. La barbarie dans la civilization. Revue Spirite. Paris, jan. 1863, p. 25. É mister que se esclareça que o Espiritismo francês do século XIX endossava as teses de Gall, o pai da frenologia, dando-lhes, porém, uma óbvia conotação espiritual. Segundo Gall, sendo o cérebro o centro de onde partiam as manifestações das faculdades intelectuais e morais, havia a necessidade de desenvolver-se as regiões cerebrais de onde se originavam as operações mentais mais elaboradas. Os povos "atrasados" possuiam, momentaneamente, pouco desenvolvidas, as regiões do cérebro que viabilizavam tais faculdades. Com o curso do "processo evolutivo" passariam a desenvolvê-las, aproximando-se da conformação cerebral encontrada entre os "povos evoluídos". Ver a esse respeito: La phrénologie et la phisiognomie. Revue Spirite. Paris, (7), jull, 1860, p. 198; Les Crétins.Idem, out., 1861.

25. FONSECA JR, J.B. de Paula. Carnaval..Jornal de Umbanda. Rio de Janeiro, n.38, fev., 1954, p. 1

26. A influência do pensamento religioso na dicotomia entre o mundo dos valores consentidos e marginais à sociedade foi estudado por Hertz. HERTZ,Robert. La prééminence de la main droite. Étude sur la polarité religieuse.In: Sociologie Religieuse et Folklore. Paris: Presses Universitaires de France, 1970.

27. Originariamente, nos cultos africanos, o Exu desempenhava a função de mensageiro entre os Orixás. A identificação do Exu com o demônio católico, portanto, foge completamente de sua identidade original. Por outro lado, essa "demonização" do Exu está bastante ligada às transformações operadas entre os cultos africanos no contexto urbano do sudeste brasileiro, particularmente, da macumba. Jerônymo Vanzellotti, na sua tentativa de criar um corpo doutrinário para a Umbanda, critica essa identificação, salientando a impropriedade das manifestações mediúnicas atribuídas a Exu. Para o autor, Exu, sendo o mensageiro dos orixás africanos não seria um espírito (assim como não o são os orixás). Portanto, haveria uma completa oposição entre os espíritos com características de sofredores que muitas vezes "baixam" nos terreiros e o mensageiro dos orixás africanos. VANZELLOTTI, Jerônymo Huberto. Umbanda Corpo de Doutrina e Código de Ética. S.l.: Secretaria de Comunicação Social da Confraria N.S. do Carmo, 1983.

28. MAGNO, Oliveira. Umbanda e Ocultismo. Rio de Janeiro:Ed. Espiritualista, 1952, p.24.

29. ORTIZ, Renato. Umbanda, magie blanche, Quimbanda, magie noire. Archives de Sciences Sociales des Religions. 24(47):142, p. 1979.

30. Sobre a importância da instituição das diferenças na construção das identidades dos grupos ver: MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo na sociedade de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

31. Ver a esse respeito a entrevista feita com a esposa de um dos intelectuais de Umbanda mais ativos no Brasil nas décadas de cinqüenta e sessenta, Jerônymo Vanzellotti e atual presidenta do Conselho Nacional da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros, Mariabélia Vanzellotti. Respondendo sobre a aceitação das normas rituais e doutrinárias emanadas das federações e intelectuais de Umbanda, fala: "...os dirigentes se acham como eles fossem um rei, e eles não aceitam a doutrina. Ele implanta o que ele quer naquele centro e acabou. Ele não escuta a voz de outra pessoa que sabe mais. Então algumas pessoas diziam que meu marido queria ser o Papa da Umbanda. Não era isso. Ao contrário. Ele queria que eles aprendessem e se fizesse a distinção entre os segmentos da Umbanda, do Omolocô, da Nação e do Candomblé. Mas infelizmente ele não conseguiu. A não ser em alguns centros, que continuam a fazer o ritual só da Umbanda, sem mistura." VANZELOTTI, Mariabélia. Entrevista. Rio de Janeiro, 04 de maio de 1997. (A/A.)

32. A inserção em uma representação essencialmente sincrética da cultura nacional aparece claramente na obra dos intelectuais de Umbanda do período. Nesse sentido são bastante representativas as palavras de Jacy Rego Barros, em um curso por ele realizado no Departamento de Cultura da Tenda Espírita Jorge do Rio de Janeiro. Referindo-se à figura da "mãe preta", o autor faz todo um elogio a um Brasil essencialmente sincrético, onde reina a maior harmonia racial, completamente à Gilberto Freyre: "Tão grande se fazia por vezes a ligação afetiva da mãe preta com seus filhos brancos, que, em tal condição ela se esquecia da posição servil da própria entidade para dispensar carinhos iguais aos garotos brancos e pretos... tendo o seu catolicismo africanizado, mãe preta passa a seus filhinhos pretos e brancos, todas as suas crendices, dizendo dos esplendores das ramas de gameleira, quando conta as histórias do compadre rico e do compadre pobre, tementes a Jesus um e outro." BARROS, Jacy Rego. Senzala e macumba. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1939, p. 107.

33. O mesmo acontece com o indígena. Este, na Umbanda, aparece como um ser forte, leal, altivo, dotado de um código de ética muito próximo do mundo judaico-cristão. Sua representação está bastante próxima dos heróis indígenas românticos brasileiros, notadamente dos personagens de José de Alencar. Sua vinculação ao mundo branco é evidente a partir mesmo da forma como são tratados: "caboclos". Isto é, apesar de serem apresentados como índios, não estão completamente inseridos em suas raízes, lutando por uma identidade diferente, são mestiços de branco com indígena. A Quimbanda, contrariamente, apresentaria um outro indígena, desafiador das normas socialmente dominantes. Por outro lado, essa inversão de imagens acontece nas infinitas entidades surgidas nas adaptações regionais do culto, tais como boiadeiros, marinheiros, soldados. A figura da Pomba-Gira, igualmente, incorporando a transgressão feminina, sofre inúmeras adaptações regionais aparecendo como bailarina, prostituta, cigana, etc. (N.A)

34. "Cette origine du symbole commençait à m'apparaître lorsque j'essayais de comprendre la sympathie de certains chefs de Centres, dans les favelas, pour la religion des Musulmans. L'Islam noir a disparu au Brésil; mas cette disparition dans les faits ne signifie pas qu'il est complètement oublié. Dans la tradition orale de la macumba, on se souvient, on en parle à mots couverts, et dans un language codé qui n'existe que parmi les noirs des favelas." LAPASSADE, Georges. La macumba, une contre-culture en noir et rouge. L'homme et la societé. Paris, (22), 1971, p. 161.

35. KARDEC, Allan. Oevres Postumes. Croissy-Beauborg: Dervy-Livres, 1978, p.53-155. DUMAS, André. Allan Kardec. Sa vie et son oevre. In: KARDEC, Allan. Op. cit., p.I e II.

36. MONTERO, Paula; ORTIZ, Renato. Contribuição para um estudo quantitativo da religião umbandista. Ciência e Cultura. 28(4):407-16,1976, p. 412.

37. BOYER, Veronique. Umbanda et Societé. La magie au confluent des contradictions. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, Memoire de D.E.A d'Ethnologie, 1985, p.24. PINTO, Tancredo da Silva.; FREITAS, Byron Torres de. Guia e ritual para organização de terreiros de Umbanda. Rio de Janeiro: Edição Eco, 1972 (6ª edição)

fonte:http://www.geocities.com/ail_br/ail.html